Lília*, de 39 anos, decidiu colocar um ponto final às agressões por parte do ex-companheiro em julho do ano passado. Desde então, conta com o acompanhamento do Grupo de Apoio às Vítimas de Violência (GAVV), parte da estrutura do Comando de Proteção e Apoio às Comunidades (Copac) da Polícia Militar. A dona de casa prefere ter o nome mantido em sigilo. “Vivi um pesadelo por 20 anos, sendo agredida verbal, física e psicologicamente pelo meu ex-marido e vendo também os meus filhos sendo vítimas do comportamento agressivo que ele tinha com a gente. Estávamos todos muito abalados”, relata, emocionada.
“É triste chegar a essa constatação, mas a violência doméstica e sexual tem um perfil muito democrático: todas, independente de raça ou classe social, estamos expostas a essa chaga. Para as mulheres que dependem financeiramente do agressor, a situação é ainda mais complicada: algumas têm dificuldades até mesmo para chegar até a nossa sede”, lamenta Eliana Maia Soares, titular da Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) de Fortaleza.
E mesmo com autonomia financeira, denunciar nem sempre é fácil. Sentimentos como culpa, vergonha e medo podem paralisar a busca por justiça. Dados da quarta edição da pesquisa “Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil”, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostram que aproximadamente 18,6 milhões de brasileiras viveram algum tipo de violência em 2022. Por isso, a integração e a melhoria dos protocolos dos serviços da Segurança Pública são chave para assegurar a proteção das mulheres.
Encarregada de investigar crimes contra mulheres cis, trans e travestis, a DDM atua de forma integrada a outros entes para garantir às cearenses uma estrutura de proteção dos direitos fundamentais. A delegada Eliana Soares explica o passo a passo: “Quando uma mulher procura atendimento aqui na delegacia, ela recebe todas as diligências necessárias para garantir a responsabilização penal do agressor. Após o registro do boletim de ocorrência, caso ela queira, solicitamos as medidas protetivas de urgência e registramos o depoimento dessa mulher da forma mais detalhada possível, para que não haja necessidade de uma nova vinda dela até aqui, evitando a revitimização”.
Mensalmente, a DDM realiza cerca de 700 atendimentos somente na Capital, com aproximadamente 300 requerimentos de medida protetiva solicitados. Em caso de crimes sexuais e de lesão corporal, além do encaminhamento para o tratamento adequado nas unidades de saúde, as mulheres também podem ser encaminhadas ao atendimento na Pefoce para a realização de perícia. O acompanhamento por equipes da Polícia Militar também pode ser solicitado pela delegacia.
“Depois da denúncia, recebi o apoio da equipe do Copac, que me visita desde então e garante a nossa proteção. Eles nos dão um apoio que não encontrei nem mesmo na minha família”, define Lília sobre a atuação do GAVV.
Além do telefone disponível em cada base do Copac, os serviços do GAVV podem ser acionados por meio do registro de queixa nas Delegacias de Defesa da Mulher. “Basta informar à escrivã ou escrivão que deseja ser acompanhada pelo grupo. A partir daí, visitamos a vítima, começamos a acompanhá-la e oferecer assistência protetiva, desenvolvemos um plano individual de segurança para ela. As soluções são construídas com base na situação vivenciada por essas mulheres”, ressalta o major Messias Mendes, coordenador do Copac.
Ele define: “A violência contra a mulher é a mãe de todas as violências, porque compromete toda a visão de institucionalidade dos componentes da família: uma criança que vê o pai agredir a mãe tem seus sentidos confundidos e passa a entender essa desordem como algo natural. Isso não pode ser tolerado”. Instalado em Fortaleza, Caucaia, Maracanaú, Maranguape e Sobral, o Comando conta com o trabalho do GAVV, que busca assertividade nas estratégias de policiamento para produzir respostas efetivas às agressões contra mulheres.
“Estamos hoje em toda a cidade de Fortaleza, distribuídos por áreas integradas de segurança (AIS), diariamente buscando solucionar situações de violência não só contra mulheres, mas também contra crianças, adolescentes, idosos, pessoas com deficiência e população LGBTQIAP+, bem como a outras minorias. Aos poucos, estamos chegando também a outras localidades do estado, como Juazeiro do Norte, Iguatu, Itapipoca e Canindé, além de Sobral e Região Metropolitana da Capital”, informa. Somente em 2022, o GAVV realizou mais de 13 mil atendimentos somente a mulheres em situação de violência. A formação teórica dos policiais contempla o estudo dos mecanismos legais de proteção da mulher, bem como a estrutura disponível no Estado para garantir seus direitos e integridade, promovendo uma ação integrada entre os entes públicos para cumprir com o que a lei determina.
Quando olhamos em perspectiva, é possível ver que os mecanismos que asseguram os direitos das mulheres brasileiras são muito recentes, embora a luta por equidade tenha raízes em tempos mais distantes – e com menos informação que hoje. A primeira Delegacia da Mulher surgiu em 1985, há menos de 40 anos; somente em 1988, com a Constituição Federal, as mulheres passaram a ser reconhecidas como iguais aos homens perante a lei. Com a sanção da Lei Maria da Penha, em 2006, as violências contra a mulher são tipificadas e reconhecidas como violações de direitos humanos. Apenas em 2015, o feminicídio – assassinato de mulheres por questões relacionadas ao gênero – passou a ser tratado como crime hediondo, com penas que podem ir de 12 a 30 anos de reclusão. A importunação sexual só passou a constar no Código Penal em 2018.
Por isso, desfazer a ideia machista de exercer poder sobre os corpos e as ações das mulheres é um processo contínuo. A delegada Eliana alerta: “Qualquer mulher que não tenha a liberdade de ser ela mesma dentro de um relacionamento deve ter atenção a esses sinais e buscar ajuda. Muitas das que chegam até a DDM já vêm vivendo a violência há algum tempo até que consigam identificar e pôr fim àquilo. Buscamos oferecer aqui um atendimento extremamente empático e humanizado a fim de impulsionar essa vítima a manter a denúncia e romper com esse ciclo de violência. Mulher nenhuma merece viver uma vida com suas liberdades cerceadas”.
Em Fortaleza, a Delegacia de Defesa da Mulher funciona na Casa da Mulher Brasileira, equipamento antes gerido pela Secretaria de Proteção Social e, agora, pela Secretaria das Mulheres. A Casa conta com Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, Ministério Público e Defensoria Pública, além de Centros de Referência municipal e estadual que ofertam atendimento psicossocial. A Casa também oferta cursos de capacitação profissional dentro da Promoção da Autonomia Econômica, alternativas de abrigamento temporário e espaço infantil para mulheres e crianças agredidas em contexto familiar.
“O nosso Setor da Autonomia Econômica busca constantemente parcerias com projetos e programas de capacitação, trabalho e renda, além de encaminhamentos para oportunidades de trabalho, na perspectiva das mulheres reconstruírem suas vidas, possibilitando romper com o ciclo da violência no qual estavam imersas”, aponta Daciane Barreto, coordenadora da Casa em Fortaleza. Mensalmente, o equipamento realiza 3 mil atendimentos só na Capital.
Além das DDM localizadas na Região Metropolitana (Caucaia, Maracanaú e Pacatuba), o interior conta com unidades no Crato, em Icó e Iguatu, além das Casas da Mulher Cearense instaladas em Juazeiro do Norte, Sobral e Quixadá.
Respeito
Pensado como um espaço de cuidado e acolhimento, o Núcleo de Atendimento Especial à Mulher, Criança e Adolescente (Namca), da Perícia Forense do Estado do Ceará, funciona desde 2015 oferecendo atendimento privativo às mulheres em situação de violência, sobretudo sexuais. “Dispomos de equipe treinada com médicos e auxiliares de perícia que prestam um serviço acolhedor e humanizado, evitando a revitimização, além de um diferencial técnico e estrutural, com aparelhos médicos que permitem maior precisão na identificação e coleta dos vestígios dos crimes, aumentando as chances de responsabilização dos agressores”, explica a médica perita Ana Leopoldina Nogueira Rocha, supervisora do Namca.
“Infelizmente, a maioria dos nossos atendimentos, uns 90%, é de meninas com menos de 14 anos. Isso mostra que, desde a infância, as mulheres estão mais expostas à violência estrutural de gênero”, destaca. Devido à faixa etária que compõe a maior parte dos casos assistidos pelo núcleo, a estrutura do serviço conta com uma brinquedoteca. “Muitas vezes precisamos usar esse apoio lúdico como ponte para acessar essa criança tão fragilizada emocionalmente”, afirma a perita.
Somente em Fortaleza, o Namca atende em média 150 pessoas por mês, divididas entre as unidades que funcionam na sede da Perícia Forense e na Casa da Criança e do Adolescente. As nove unidades da Pefoce no Interior contam com estrutura semelhante para prestar assistência adequada às vítimas em Juazeiro do Norte, Canindé, Tauá, Crateús, Russas, Sobral, Quixeramobim, Iguatu e Itapipoca, além dos municípios adjacentes.