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Redução de danos no uso de drogas: “Objetivo é a autonomia do cidadão e o engajamento dele no tratamento”, explica psiquiatra

Na estratégia, a abordagem preferencial não é a abstinência do consumo de substâncias

A redução de danos reúne um conjunto de ações para a abordagem de problemas relacionados ao uso de drogas lícitas e ilícitas. A estratégia, como aponta a psiquiatra Lisiane Cysne de Medeiros Vasconcelos e Rego, busca minimizar os riscos causados pelo consumo de diferentes substâncias, sem necessariamente ter de se abster do seu uso.

Em entrevista, a doutora em Psiquiatria pela Universitat Autónoma de Barcelona e mestra em Dependência Química pela Universitat de Barcelona detalha o conceito, cita o percurso da medida no Brasil e no mundo e enfatiza a importância de colocar o paciente no centro do cuidado, evitando julgamentos morais e de valores.
Também preceptora e coordenadora do módulo de Dependência Química da Residência Médica em Psiquiatria do Hospital de Saúde Mental Professor Frota Pinto (HSM), unidade da Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa), Cysne (à direita) é associada e prescritora de cannabis medicinal pela Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança (Abrace) e pela Sociedade Brasileira de Estudo da Cannabis Sativa (SBEC).

Confira a entrevista na íntegra

O que é redução de danos?
Lisiane Cysne: Essa conduta tem origem na década de 1920, no Reino Unido, passa pela Holanda e chega ao Brasil somente no fim dos anos de 1980. Eu gosto do nome porque já diz muito sobre o tema. Redução de danos são estratégias que se pautam no respeito ao cidadão como ser pensante e capacitado para definir seus objetivos de tratamento, buscando as formas de menor prejuízo para a sua saúde. É sobre alcançar a pessoa em uso de substância e que pode ser assistida. O foco é na prevenção do dano, e não na prevenção do uso de drogas. A abstinência pode ser uma das orientações de terapias dentro da redução de danos.

Como essa estratégia é feita na prática?
L.C.: Quando se parte do princípio de que a finalidade do tratamento é o sujeito, fica mais fácil entender a estratégia de redução de danos. O principal objetivo é defender a vida. É uma política mais abrangente sobre o uso de drogas, buscando entender a complexidade do fenômeno e suas particularidades culturais e sociais, partindo do pressuposto de que a extinção das drogas é impossível, como já atestada pela falida “guerra antidrogas”. É sobre oferecer assistência adequada a quem a procura.

A redução de danos em relação ao uso de substâncias ocorre quando se aborda convenções — que podem ser modificadas — associadas ao uso de substâncias. Por exemplo: a tão conhecida distribuição de seringas descartáveis para usuários de substâncias injetáveis, aliada a uma abordagem informativa. Uma medida simples para evitar a contaminação de pessoas por doenças transmissíveis pelo sangue.

Esse tipo de estratégia foi registrada em 1989, na região portuária de Santos (SP), quando a Secretaria Municipal de Saúde criou o Programa Municipal de Aids. Com o consumo crescente de crack, houve aumento dos casos de tuberculose e de hepatite, transmitidas pelos cachimbos compartilhados. Ofereceu-se, então, oficinas de construção de cachimbos para que o cidadão fizesse seu próprio objeto, em vez de dividi-lo com outras pessoas.

Redução de danos pode ser considerada um tratamento?
L.C.: A estratégia inicia mais tímida, somente como um conjunto de medidas de prevenção, mas ganha robustez a partir da perspectiva dos direitos humanos. Hoje, é entendida como um tipo de conduta de terapia vinculada a uma política. Em 1998, já tínhamos vários projetos no Brasil sob a ótica da redução de danos, até o conceito entrar como princípio norteador na Política Nacional de Saúde Mental e, posteriormente, na Política Nacional sobre Drogas (PND).

O que a Política Nacional sobre Drogas traz hoje sobre a redução de danos?
L.C.: No ano 2006, foi aprovada lei nº 11.343, que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD). O dispositivo regia a política pública sobre drogas e estabelecia alguns princípios básicos da prevenção como o não uso ou o retardamento do consumo de substâncias, ressaltando a autonomia e a responsabilidade individual, tendo como objetivo a redução de riscos. Infelizmente, a PND foi reeditada em 2019, e o Governo Federal se colocou de forma desfavorável ao tipo de intervenção de redução de danos, adotando a abstinência como abordagem preferencial.

Como essa abordagem é discutida na saúde pública e por profissionais da área?
L.C.: Já que a abordagem da redução de danos pressupõe um tratamento pautado no respeito ao cidadão, é necessária uma escuta complexa, adequada à situação de cada um, que acolha a pessoa e a família, evitando julgamentos morais ou de valores. Portanto, o trabalho em equipe é fundamental. Há vários serviços que fazem parte dessa rede: Consultório na Rua [modalidade da atenção primária à saúde], postos de saúde, escola, Centro de Referência de Assistência Social, dentre outros. O objetivo é promover a autonomia do cidadão e o engajamento dele no seu tratamento.

Uma coisa muito importante é a parte financeira da abordagem da redução de danos. Esse tipo de medida necessita de equipes com gastos mínimos, se compararmos às internações em hospitais ou em outros equipamentos. É um modelo mais barato para o sistema e de maior alcance, já que não se fixa na necessidade da abstinência completa para promover o tratamento do cidadão.

Como os serviços são regionalizados e dentro das comunidades, há maior acesso e possibilita um vínculo mais fácil. A pessoa não precisaria parar suas funções produtivas para dar início e seguimento à terapia.

Há uma frente que condena a redução de danos. A estratégia pode ser entendida como apologia ao consumo de drogas?
L.C.: É assustador que, após mais de 30 anos, estejamos ainda discutindo essa pauta. Foram vários exemplos em outros países da resolutividade e da importância da redução de danos. Na atualidade, devíamos discutir sobre as novas e mais modernas salas de consumo, sobre as novas abordagens nas redes sociais e os aplicativos para auxiliar nos tratamentos pautados em redução e danos, sobre as abordagens nas escolas.

Por preconceito e desinformação, estamos ainda nos perguntando se a redução de danos é uma boa estratégia ou se estimula o consumo de substâncias. Lamentável que, em pleno século XXI, ainda se pense a dependência química como doença insuperável, reduzindo o paciente a um sistema de obediência e submissão.

Apologia ao consumo de drogas são indicadores de saúde péssimos: insegurança alimentar, jornadas exaustivas de trabalho, meios de transporte que não atendem às necessidades da população. Apologia ao uso de drogas é o cidadão com fome, sem teto, sem oportunidades. São pessoas sem acesso à Educação e à Cultura. Esta é a grande apologia à dependência química. É uma sociedade enferma que busca no consumo da mercadoria seu único prazer, excluindo e marginalizando os indivíduos pela ausência de acesso. Como o xamã Yanomami Davi Kopenawa sintetiza: povo da mercadoria.



Fonte: Governo do Ceará

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