A ginecologista Débora Britto destaca o papel dos profissionais de saúde na assistência a pessoas LGBTQIAP+ e na proteção de direitos
O acolhimento e a afirmação de gênero de mulheres trans e travestis perpassam a assistência em equipamentos de saúde. Desde a atenção primária, nas unidades básicas, o atendimento qualificado é fundamental para a efetivação dos direitos dessas populações.
De acordo com a ginecologista Débora Britto, o respeito ao uso do nome social e a realização de um atendimento ginecológico, por exemplo, são imprescindíveis para garantir acesso à saúde, bem como para legitimar essas identidades.
A médica também é assessora técnica da Superintendência da Região de Saúde de Fortaleza (SRFOR) da Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa). Ela destaca o papel dos profissionais da Saúde na assistência e na defesa de direitos dessas pessoas, ressaltando não haver demandas específicas para este público, e sim um cuidado integral.
Confira a entrevista:
Qual o papel dos profissionais da Saúde no acolhimento, no cuidado e na atenção à saúde de mulheres trans e travestis?
Débora Britto: Mulheres trans e travestis devem, como qualquer outra pessoa, ter acesso à saúde integral. Como profissional de saúde, desde o respeito a essa identidade e ao nome social, é preciso estar atento às questões apresentadas por aquela pessoa. Sejam relacionadas à própria construção da identidade, como alguma necessidade de afirmação de gênero, tais como hormonioterapia ou algum procedimento cirúrgico, seja pelo desejo de receber orientações sobre esse acesso e sobre outras demandas gerais de qualquer usuário do Sistema Único de Saúde (SUS).
Acesse o “Guia de Diversidade – Igualdade no serviço público de saúde do Ceará
Mulheres trans e travestis não são uma população à parte que vai ter apenas pedidos específicos relacionados às identidades de gênero. Elas têm todas as mesmas necessidades de qualquer outra pessoa e a gente precisa estar atento a isso. Elas precisam ter o cuidado de saúde integral, desde a saúde preventiva, até a assistência em relação a algum processo de adoecimento crônico.
Quais recomendações para a atenção ginecológica às mulheres trans e travestis?
D.B.: A literatura científica mostra que mulheres trans e travestis se sentem mais identificadas com o profissional ginecologista do que com o urologista. Isso se dá por uma questão de identidade de gênero entre a demanda recebida por aquele profissional e a paciente.
Isso nos chama atenção para estarmos mais preparados para entendermos outros contextos das nossas pacientes, incluindo elucidações que precisam ser feitas, como em relação à prevenção de qualquer tipo de adoecimento.
Independentemente de a gente estar ou não em um espaço de cuidado específico da Ginecologia, antes de sermos ginecologistas, somos médicas e médicos, e essa formação nos faz ter esse compromisso de também orientar mesmo quando algo foge à especialidade.
Como o respeito à identidade de gênero nos serviços de saúde impacta no atendimento e na vida dessas mulheres?
D.B.: Uma barreira de acesso é exatamente o desrespeito. Então, se você vai a um equipamento em que o seu nome não é respeitado, isso já se torna um fator limitante no acesso. Ter o nome respeitado minimiza situações vexatórias e desconfortáveis, traz uma sensação de acolhimento e de respeito, e não deixa de ser o primeiro cartão de visita para podermos, no atendimento, nos apresentar como profissionais atentos aos cuidados que precisam ser oferecidos.
É também um importante sinal para que essa pessoa se sinta amparada a ponto de conseguir compartilhar o que, de fato, a incomoda. Assim, a gente consegue entender o tipo de assistência necessária.
Como incentivar o cuidado de uma maneira afirmativa nas demandas de saúde sexual e reprodutiva de mulheres trans?
D.B.: Um ponto fundamental é o respeito à identidade. Segundo, entender que não existe um especialista em pessoas trans e travestis, e sim demandas específicas surgidas a partir da construção dessas identidades. Nesses casos, devemos nos capacitar um pouco mais. Não podemos delegar esse cuidado a um especialista em transexualidade, por exemplo, porque não existe esta especialidade médica.
Débora Britto destaca não existir “especialista em mulheres trans e travestis”; profissionais devem buscar capacitação na temática
Acredito ser uma atenção que precisamos desenvolver como médicos e como ginecologistas. Entender que não existe subespecialista, mas que é preciso agregar a prática clínica a um saber acerca daquelas especificidades.
Quais os maiores prejuízos na falta de acesso à saúde e de acompanhamento profissional apropriado para mulheres trans e travestis?
D.B.: Um dos maiores danos é a negação da cidadania das pessoas. Outro mal é você deixar de realizar um cuidado possivelmente preventivo para, muitas vezes, ter de lidar com uma situação muito mais grave, como uma doença oncológica.
Quais serviços mulheres trans e travestis podem ter acesso na atenção primária (nos postos de saúde)?
D.B.: A atenção primária, por definição, é a primeira porta de acesso para o atendimento em saúde de qualquer sujeito. Então, precisa ser a porta de entrada também para mulheres trans e travestis, de modo que elas possam ter cuidados de prevenção ao adoecimento, de qualquer tipo, e para o recebimento de orientações e educação em saúde. É neste serviço que elas poderão ter contato com as primeiras informações e os encaminhamentos em relação aos procedimentos de afirmação de gênero.
Mesmo quando aquele cuidado requer um olhar especializado, é neste momento que podemos gerenciar riscos primários. A partir daí, com uma boa qualificação deste nível de atenção em saúde, encaminhar essas demandas para os pontos onde as necessidades específicas poderão ser trabalhadas.
Uma mulher trans pode escolher fazer tratamentos hormonais ou ainda procedimentos cirúrgicos para que o corpo expresse características do gênero com o qual ela se reconhece. Por qual motivo é importante ter um profissional de saúde acompanhando esse percurso?
D.B.: Contribuir para que esses procedimentos de afirmação de gênero aconteçam da melhor maneira possível é colaborar para o conforto e para o convívio social dessas pessoas, ajudando elas a dar continuidade aos seus projetos de vida e diminuindo uma série de determinantes sociais de adoecimento como a desigualdade social e o preconceito.
Quando a gente cuida de mulheres trans e travestis para que elas vivam da melhor maneira possível e tenham a oportunidade de seguir os seus sonhos, compreendemos que “à margem” não tem a ver com identidade, e sim com exclusão, e essa reflexão é fundamental para a Saúde.
Cuidar das pessoas, dar acesso aos processos de afirmação de gênero, para mim, é algo benéfico não apenas para essas pessoas, mas para a sociedade como um todo.