Dentre as 19 especialidades odontológicas reconhecidas pela legislação brasileira, os CEOs oferecem 16
“É muito difícil, sabe? Eu recebi muitos ‘não’ até chegar aqui”. Foi assim que Maria do Carmo, de 56 anos, definiu a caminhada com a filha Ana Karine, diagnosticada com esquizofrenia por outros profissionais, até o atendimento no Centro de Especialidade Odontológica (CEO) Centro, em Fortaleza. O equipamento é um dos três do tipo vinculados à Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa) na Capital.
As unidades são referência em assistência odontológica e realizam desde tratamento de canal e de gengiva até cirurgias e implantação de próteses. O serviço também se destaca no atendimento a pessoas com deficiência (PcDs). No dia 20 de março é comemorado do Dia Mundial da Saúde Bucal.
Enquanto aguardava a consulta, a jovem de 20 anos repetia não querer extrair sequer um dente e se assustava toda vez que a porta defronte ao ambulatório abria. As reações de Karine são comuns às de outras PcDs acolhidas pelo CEO Centro, como pontua a diretora do local, Marieta Sales.
“Nós vemos os mais diversos comportamentos aqui e nos preparamos para lidar com todos. Vai desde uma agitação mais branda até mesmo algo mais forte. Por isso, o atendimento sob anestesia geral e sedação consciente para este público é tão importante. Não são todos os lugares que conseguem trabalhar com esse perfil”, afirma a cirurgiã-dentista, atuante há 42 anos na área de Odontologia, sendo três à frente do equipamento.
Serviço especializado
Acompanhada por equipe multiprofissional, a assistência odontológica sob anestesia geral, prestada há dez anos a pacientes PcDs, contempla pessoas com transtorno psiquiátrico como o do espectro autista (TEA) e até aquelas com severas restrições físicas e mentais.
Coordenadora do Serviço de Atendimento a Pessoas com Deficiências do CEO Centro de 2012 a 2022, Eliane Ferreira destacou o pioneirismo da iniciativa. “Quando esse serviço foi iniciado, não existia especialização [nessa área], não existiam pessoas com preparo para assumir uma atividade dessa. Então, fomos, aos poucos, montando essa especialidade”, lembra a cirurgiã-dentista.
Inicialmente pensado para atender apenas crianças e de forma laboratorial, o atendimento especializado ganhou novas proporções. “Surgiu da necessidade da aplicação de anestesia geral, a partir da demanda da população”, complementa Ferreira, também professora universitária. A docência, ela conta, foi influenciada pela convivência com pacientes da estrutura. Nas aulas, a profissional aborda a assistência odontológica a PcDs.
Em uma década, mais de 700 anestesias gerais foram realizadas no espaço. Esse tipo de procedimento acolhe um paciente por dia, às terças e sextas-feiras. “É um número relevante, mesmo com a pandemia de covid-19 represando as consultas. Aqui não falta paciente; a importância do equipamento é muito grande, a demanda também, e vem de todo Estado”, ressalta a gestora.
A busca pelo “sim”
Antes de chegar ao CEO, Ana Karine passou por pelo menos três unidades de saúde, entre particulares e públicas. “Ela está com o dentinho estragado na boca, e nós demos viagens com ela três vezes, mas não foi aceita em nenhuma clínica por ser PcD”, lamenta Maria do Carmo. “Na última clínica [particular], fui enviada ao posto, e lá me orientaram que era preciso um atendimento especial. Encaminharam ela para fila de espera, para procurar esse lugar ideal, e em 24h minha filha já foi chamada”.
A mãe da garota se dedica integralmente aos cuidados da jovem e respirou aliviada ao chegar ao Centro. “É importante ter um lugar para acolher a gente, um lugar que atenda gente como ela, que a entende, né? Vir aqui depois de tanto ‘não’, tanto aperreio, dá uma alivio”, comemora.
De acordo com Eliane Ferreira, os cirurgiões-dentistas do serviço estadual frequentemente se esbarram com histórias semelhantes à de Ana Karine. “São pacientes que não deixam ninguém ver a boca ou fazer o procedimento, então, eles acabam indo em vários lugares. Nós nos deparamos com famílias que já receberam tantos ‘não’, que nos sentimos responsáveis pelo ‘sim’. Essas pessoas chegam fragilizadas, e nós, além de tudo, as acolhemos”.
Sedação consciente
Para tranquilizar ainda mais os familiares, um novo procedimento foi adotado a partir de 2022: a sedação consciente. A técnica é feita a partir da inalação de óxido nitroso combinado com oxigênio.
Durante a intervenção, o paciente fica acordado, responsivo aos comandos verbais e aos estímulos físicos, e com respiração espontânea. A medida é importante, sobretudo, para aqueles com dificuldade de relaxamento e que precisam fazer raspagens, extrações ou restaurações.
Tanto a sedação consciente como a anestesia geral, no entanto, são realizadas em pacientes a partir de 18 anos após triagem junto à equipe multiprofissional. Se houver necessidade, os profissionais podem solicitar exames complementares nos hospitais Geral Dr. César Cals (HGCC) e José Martiniano de Alencar (HMJMA), ambos da rede estadual.
“Todos esses procedimentos têm indicação; os casos vão para o ambulatório e, conforme o parecer da equipe, são direcionados para a sedação ou para a anestesia geral. Alguns necessitam de encaminhamento para outro hospital”, explica a diretora Marieta Sales.
Regionalização
A rede estadual de assistência odontológica possui 25 CEOs. Destes, três são em Fortaleza – nos bairros Rodolfo Teófilo, Centro e Joaquim Távora; os dois últimos funcionam 24h. Outros 22 equipamentos estão espalhados pelo Interior, sob gestão de consórcios públicos.
Para atendimento especializado em qualquer uma das unidades, são necessários avaliação e encaminhamento de profissionais da atenção primária. “Consultas e procedimentos básicos são feitos nos postos de saúde. Se identificada demanda por algo complementar, o paciente é regulado e, a depender das vagas mensais, é feita a triagem para os CEOs”, detalha Sales.
Depois, a equipe do Centro faz o acolhimento e direciona o paciente para a especialidade sugerida, para consulta inicial. Atendimentos posteriores, se indicados, podem ser agendados no próprio local. “Das 19 especialidades reconhecidas pela legislação brasileira, nós oferecemos 16. Então, podemos não fazer tudo, mas fazemos algo muito importante para quem mais precisa”, argumenta a gestora.